Grã-Bretanha: Um ultraje constitucional Share TweetA Grã-Bretanha está em meio a uma profunda crise, nunca vista nos tempos modernos. Há um reboliço geral. Não é só a visão de um jornal de esquerda, mas a visão oficial da classe dominante britânica.[Source]No passado, esses poderosos interesses capitalistas tomavam todas as decisões. Mas, hoje, perderam o controle da situação.Derrubar o governo“Boris Johnson detonou uma bomba sob o aparelho constitucional do Reino Unido”, declarou o editorial de 28 de agosto do Financial Times, o órgão do capital financeiro britânico.As ações de Boris Johnson, o primeiro-ministro Conservador, em prorrogar o Parlamento são descritas como “sem precedentes modernos”.“A história mostrou que charlatães, demagogos e possíveis ditadores desprezam o governo representativo. Eles buscam formas de contornar o parlamento antes de concluir que ele é inconveniente. Mr. Johnson pode não ser um tirano, mas tem um perigoso precedente. Ele e a cabala em torno dele, que escolheram esse caminho revolucionário. devem tomar cuidado com o que desejam”O contundente editorial conclui: “É hora de os parlamentares derrubarem seu governo com um voto de desconfiança, abrindo caminho para uma eleição na qual o povo possa expressar sua vontade” (FT, 28/8/19).Isso é realmente surpreendente. O setor dominante da classe dominante – temendo um Brexit duro – está publicamente pedindo a derrubada de um governo conservador! Dizem que isso é necessário “para salvaguardar a democracia britânica”. Na verdade, é para proteger o seu poder, lucros e interesses materiais, disfarçados como “interesse nacional”.Precedente perigosoCertamente estamos vivendo em tempos anormais. Alguns os estão comparando ao período anterior à Guerra Civil Inglesa, quando Charles I prorrogou o Parlamento. Isso terminou com sua cabeça cortada.Boris Johnson não é Charles I. Charles pode ter perdido sua cabeça, mas pelo menos tinha uma para perder. Johnson é um primeiro-ministro que não foi eleito, liderando um governo minoritário. Seu principal interesse – além dele mesmo – é garantir o Brexit, sejam quais forem as consequências, e elevar sua própria posição. Ele e a pequena cabala de leais brexiteers estão empenhados na rota de um Brexit sem acordo.As ações de Johnson são compreensivelmente rejeitadas pela maioria das pessoas. Cerca de metade dos britânicos entrevistados em uma pesquisa YouGov rejeita seu plano de suspender o Parlamento. Mas Rees-Mogg, líder da Casa dos Comuns, desprezou a reação violenta considerando-a um “ultraje de algodão doce”.É uma tentativa de “golpe” constitucional. Isto, para inquietação dos constitucionalistas, estabelece um perigoso precedente. Afinal, poderia encorajar um futuro governo trabalhista a impulsionar um programa radical por tais meios.Pisada erradaJohnson sabe que não pode garantir um acordo com a União Europeia que elimine o apoio irlandês. Mas sua atitude dura causou alarme nas capitais europeias. Isso faz parte da manobra.Dada sua fraca base parlamentar, a única forma com que pode fazer passar o Brexit é adotando artimanhas e colocando seus opositores de pé atrás – principalmente entre todos os parlamentares conservadores “rebeldes”. Ele lhes prometeu um acordo através do Conselho Europeu em 17-18 de outubro, esperando que isso os impeça de apoiar um voto de desconfiança.A prorrogação do Parlamento foi usada para causar a máxima perturbação dentro da oposição. Boris os enganou ao enviar Jacob Rees-Mogg ao Castelo de Balmoral para obter o consentimento da Rainha ao seu “golpe”.Corbyn havia concordado recentemente com os Lib Dems, Independentes e partidos nacionalistas em que se uniriam para encontrar meios legislativos para derrotar um Brexit duro. Agora, isso está excluído, dada a falta de tempo. Agora não há como parar um Brexit duro exceto por um voto de desconfiança para expulsar Boris.No entanto, essa opção é desagradável para a oposição Lib Dem-Tory-Independentes, já que daria o poder a Corbyn. Isso é algo que lhes revolta o estômago, mesmo que Corbyn viesse a ser apenas um primeiro-ministro temporário de um governo interino.Eles estão sendo forçados por Johnson a fazer escolhas difíceis muito rapidamente. Boris até os desafiou a derrubar seu governo na próxima semana.“Defendendo a democracia”A suspensão do Parlamento certamente aumentou a turbulência política na Grã-Bretanha. Os conservadores estão divididos, com Ruth Davidson renunciando como líder do Partido Conservador Escocês.Por seu lado, John Bercow, o presidente da Câmara dos Comuns, chamou a prorrogação de “ultraje constitucional”, dizendo: “o propósito da prorrogação agora seria deter o debate sobre o Brexit e cumprir com o seu dever de definir um curso para o país”.A esquerda também está alarmada com Boris Johnson “ameaçando a democracia parlamentar”. O jornalista e comentarista Paul Mason, por exemplo, liderou uma manifestação do lado de fora do Parlamento na noite do dia 28 para “defender a democracia”.Naturalmente, devemos defender nossos direitos democráticos, pelos quais a classe trabalhadora teve que lutar e conquistar: o direito de voto, o direito de greve, o direito de organização etc.Mas, em seu discurso à multidão na noite passada, Mason elogiou a loja de conversas fiadas parlamentar. No processo, ele apresentou alguns argumentos atrozes, incluindo bobagens sobre “a grande contribuição do Partido Conservador à democracia”. Isso é muito doentio no 200o aniversário do massacre de Peterloo, quando o povo trabalhador foi massacrado por pedir para votar, pelos antepassados dos conservadores.“Aos meus amigos do Partido Conservador, respeito a tradição de que vocês fazem parte”, anunciou Mason diante de sua audiência reunida no College Green, em Westminster ontem. “Respeito a contribuição de seu partido para fazer da democracia britânica o que é: desde Peel, Disraeli e sim, Winston Churchill…”Como é ignorante! De fato, foi Sir Robert Peel quem, em dezembro de 1842, prorrogou o Parlamento por um período de seis meses! São precisamente essas convenções Conservadoras que Johnson está usando agora para realizar sua suspensão do parlamento.Os conservadores se opuseram a cada extensão dos direitos democráticos, incluindo o direito de voto e greve. Isso parece ter sido esquecido por Paul Mason, na pressa de defender a “democracia”.Ele elogiou a Suprema Corte – como a mais alta autoridade do país – que, segundo ele, endossa a “vontade do povo” que “se expressa apenas no Parlamento”. Mas esse tribunal é um órgão não eleito e incompreensível, totalmente nos bolsos das grandes empresas, e que constantemente respaldou muitas leis contra a classe trabalhadora e que certamente não é nosso amigo.Greve geral?Owen Jones pediu a ocupação do parlamento “pelos cidadãos” – e até mesmo uma greve geral para “defender a democracia”. Em outras palavras, uma greve geral para manter o Parlamento em sessão!Mas uma greve geral coloca a questão do poder: quem controla a sociedade? Não é uma questão secundária. A ideia de milhões de trabalhadores indo à greve sem pagamento – indefinidamente – para que os deputados possam continuar sentados na Casa dos Comuns – carece do senso das proporções.E quem vai convocar essa greve geral? Owen Jones? O congresso sindical? Se uma greve geral fosse possível, seria muito melhor convocar uma greve de protesto de um dia, diretamente ligada a uma campanha para expulsar os conservadores e por uma eleição geral imediata.Poderíamos então lutar não por um tempo extra para as sessões parlamentares, mas por um governo de Corbyn comprometido com políticas socialistas.A monarquiaJeremy Corbyn buscou uma reunião com a Rainha para discutir a decisão de prorrogar o Parlamento. Mas a monarca já tinha dado sua real bênção ao pedido de Johnson. A ironia de um líder partidário eleito pedindo a uma realeza não eleita para “salvar a democracia” ficou clara para todos verem. Nossa soberana foi uma ferramenta voluntária de Boris Johnson. Como Kate Osamor, uma deputada suplente, tuitou: “A Rainha não nos salvou”.A monarquia não existe para salvar ninguém – exceto a ela mesma e ao establishment, do qual faz parte. É uma arma de reserva da classe dominante, para ser usada em emergências graves.Esses “humildes apelos” à Rainha para deter Boris não impediram o grupo “Best of Britain”, um grupo a favor da Permanência, de emitir uma ameaça:“Se se pede ajuda à Rainha, ela faria bem em se lembrar que a história não parece muito gentil com a realeza que ajuda e favorece a supressão da democracia”Nenhuma confiançaMas não é absolutamente certo que um voto de desconfiança tenha êxito no parlamento. Esta é a razão da severa exigência de o Financial Times para a oposição engolir suas diferenças para “salvaguardar a democracia britânica”.Pressão será exercida e braços serão torcidos para fazer a coisa certa. Dominic Grieve, um proeminente defensor Tory da Permanência, já disse que votará a favor de uma moção de desconfiança. Outros seguirão o exemplo.Mesmo que o voto de desconfiança seja aprovado, fontes importantes do governo disseram que Boris se recusará a renunciar ou que recomendará à Rainha que ela convoque um líder alternativo para formar um novo governo. Isso levaria ao caos constitucional, atraindo a Rainha a se meter ainda mais na confusão.Johnson pode preferir, em vez disso, convocar uma eleição geral imediata, cuja data exata estará em suas mãos. Ele poderia acelerar o relógio marcando o dia das eleições para o início de novembro, quando a Grã-Bretanha já teria deixado a União Europeia sem um acordo.Por outro lado, se o voto de confiança falhar, o Parlamento se reunirá em 14 de outubro para ouvir o Discurso da Rainha – apenas duas semanas antes da data limite do Brexit.Tudo chegará a um crescendo. A oposição pode achar que perdeu o barco, pois um voto de desconfiança, seguido por uma eleição geral, levaria a Grã-Bretanha a sair da União Europeia sem um acordo.Por um governo Trabalhista socialistaUma eleição geral é inevitável mais cedo do que mais tarde. Será a eleição geral mais amarga já travada e as apostas serão muito altas.É claro que Johnson se manterá na plataforma de “nenhum acordo”, entrando em um pacto eleitoral com Farage e o Partido do Brexit. Ele tentará enquadrar a eleição como uma batalha entre o Parlamento e o povo, com ele próprio do lado do “povo”. Ele acha que pode repetir a campanha do referendo da União Europeia de 2016 mais uma vez e ganhar um novo mandato para um Brexit sem acordo.Infelizmente, Corbyn foi forçado a uma posição pró-Permanência, principalmente pelos Blairistas do Partido Trabalhista Parlamentar. Em vez de explicar que, com base no capitalismo, estar dentro ou fora da União Europeia nada será resolvido para a classe trabalhadora, ele cedeu à pressão.A razão por que o Partido Trabalhista se saiu tão bem na eleição geral de 2017 foi o fato de Corbyn se concentrar nos temas de classe e não no Brexit. Mas agora Corbyn prometeu que, se eleito, o trabalhismo realizará um segundo referendo. Isso será retratado por Boris e Cia como bloqueando o Brexit.Por outro lado, Johnson tentará concentrar toda a atenção da eleição geral no Brexit e em como ele está garantindo “o voto do povo”. The Sun, Daily Mail, Express etc., todos o ajudarão nesse sentido. Ficarão histéricos ao atacar Corbyn e os outros sobre esse assunto.Johnson acredita que ou a oposição desmoronará ou será forçada a travar uma eleição geral em seus termos. Naturalmente, uma eleição geral será uma aposta para Johnson. Será uma situação de fazer ou morrer.No entanto, no passado, ele, como líder do Partido Conservador, teria recebido apoio total da mídia capitalista. Mas, com exceção da imprensa marrom, este não será o caso dessa vez.A classe dominante está dividida. Setores dela apoiarão o campo da permanência. Preferem algum tipo de governo de unidade nacional, mais do que um governo trabalhista de Corbyn. No entanto, muito dependerá da aritmética parlamentar, o que é impossível de se prever.Seja qual for o resultado, a Grã-Bretanha entrou em um período extraordinariamente convulsivo: política, econômica e constitucionalmente, e em todas as suas possíveis formas. Nada será o mesmo novamente.A podridão do establishment está sendo revelada diariamente. A cena está sendo montada para convulsões revolucionárias, nas quais a transformação socialista estará na ordem do dia.