Grã-Bretanha: acabou a austeridade? Share TweetÉ inegável que a pandemia cravou o último prego no caixão do período anterior. Mas as exultantes alegações de que a austeridade é uma coisa do passado se mostraram prematuras, à medida que a classe dominante começa a encerrar sua farra de gastos com a Covid-19 e a retomar os ataques contra os trabalhadores. A questão é: qual é o caráter deste novo período, e o que isso acarretará para a classe trabalhadora?[Source]Muitos na esquerda estão lendo as orações fúnebres do “neoliberalismo” – uma política de capitalismo de mercado livre, brutal e irrestrito e de cortes nos gastos do Estado – e declarando que, com sua morte, a austeridade acabou.Como evidência disso, eles apontam, por um lado, as sólidas intervenções estatais na economia em todo o mundo, com pacotes de estímulo fiscal sem precedentes e esquemas de apoio ao emprego empreendidos para prevenir o colapso econômico total e a agitação social durante a pandemia.Por outro lado, eles citam o aparente entusiasmo, recém-descoberto, dos governos ocidentais pela política industrial (ou seja, o Estado tentando planejar e dirigir o capitalismo) e o protecionismo.Na Grã-Bretanha, por exemplo, Boris Johnson, o Brexit e os Conservadores que conquistaram o “Muro Vermelho” [um grupo de deputados Conservadores em desconforto com a austeridade – NDT) prometendo investimento estatal maciço para “elevar o nível” dos distritos eleitorais do norte são vistos como exemplos importantes dessa mudança radical.Temos também o enfraquecimento da legislação anti-sindical do presidente dos EUA, Joe Biden, e o relaxamento das regras de auxílio estatal por parte da União Europeia (UE) para permitir que ela proteja as suas indústrias em concorrência com a China.Se fosse verdade, tal mudança teria implicações importantes à luta de classes. O fim da austeridade provavelmente fortaleceria a mão da classe trabalhadora e a encorajaria a lutar para ganhar parte do dinheiro extra que está sobre a mesa.A perspectiva de que o neoliberalismo e a austeridade acabaram é apoiada por nomes como o economista de esquerda James Meadway; no entanto, ele também alerta que isso não significará um passeio fácil da classe trabalhadora:“Acabar com a austeridade nos termos ditados por este governo conservador, ou mesmo pelo FMI, não irá – sem dúvida será um choque – anunciar o amanhecer de uma nova era de generosidade pública igualitária” (Novara Media, 20 de outubro de 2020).Ele acrescenta que“acabar com a austeridade será um processo dominado e operado por um governo conservador, o que significará favoritismo político, corrupção e despropósitos na distribuição de quaisquer aumentos de gastos – já vimos isso em torno dos contratos de aquisição de equipamentos de proteção pessoal” (Ibid).Essa perspectiva, ou seja, a perspectiva de que os conservadores e outros governos burgueses estão acabando com a austeridade, não é exclusiva de Meadway. Faz parte da ideia, muito popular na esquerda nos últimos 10 anos, de que a austeridade sempre foi uma opção política e ideológica, ao invés de decorrer inevitavelmente do próprio capitalismo.A ideologia que fundamentou essa escolha foi, é claro, o temido neoliberalismo. Agora que essa ideologia está aparentemente morta, é lógico que a loucura da austeridade deve acabar e podemos voltar aos negócios como de costume.Os negócios, como de costumeMas o que é o business as usual? A austeridade realmente representou uma ruptura com a inspirada norma “neoliberal”? Ou é o contrário? Aqueles que estão abrindo garrafas de champanhe pelo fim da austeridade certamente notaram o fato de que o aumento £ 20 (vinte libras esterlinas) para o Crédito Universal, introduzido na Grã-Bretanha durante a pandemia, está prestes a terminar, o que custará a até seis milhões de famílias uma quantidade de £ 1.502 por ano.É revelador que, quando perguntaram à ministra do Trabalho e Pensões, Baronesa Stedman Scott, se o governo havia se preocupado em avaliar os efeitos desse corte para 6 milhões de famílias, ela respondeu que: “Não temos obrigação de realizar uma avaliação de impacto, já que ‘estamos voltando aos negócios como de costume’”.“Os negócios como de costume” para o capitalismo em seu período de decadência senil não significam keynesianismo, nem um período renovado de crescimento econômico e prosperidade, mas, precisamente, austeridade. James Meadway é ingênuo por acreditar na palavra de Boris Johnson, para dizer o mínimo.De acordo com o TUC, cerca de 1 em cada 20, dos que experimentaram durante muito tempo a Covid-19, perdeu o emprego como resultado. Eles agora estarão no (recentemente reduzido) Crédito Universal, algo que provavelmente nunca esperaram que acontecesse. E logo descobrirão o quão insensível é esse governo conservador.É interessante observar que o Grupo de Pesquisa do Norte dos deputados Conservadores (que é composto por novos deputados Conservadores do “Muro Vermelho”, mais desconfortáveis com a austeridade do que outros Conservadores) pediu que esse corte não fosse feito. Entre o público, 51% são contra o corte do Crédito Universal, enquanto apenas 22% são a favor. Até 40% dos eleitores conservadores são contra o corte, em comparação com 33% a favor. Mas o corte está sendo feito. Em outras palavras, este governo está tomando decisões sob o interesse das grandes empresas, e não sob qualquer programa populista de “anti-austeridade”.O orçamento mais recente do governo “anti-austeridade” de Boris Johnson, na verdade, continha um corte de 8,5% na maioria dos departamentos, apesar das manchetes sobre o “nivelamento” do país. Apesar de prometer que nenhum arrendatário teria que pagar para remobiliar seus apartamentos como resultado do desastre da Grenfell Tower, no final serão eles que desembolsarão o dinheiro.O plano de recuperação educacional do governo de Johnson consistiu em patéticas £ 50 por aluno, em comparação com £ 2.500 na Holanda. Sob seu regime, acredita-se que 1 em cada 10 trabalhadores esteja enfrentando condições predatórias de demissão e recontratação. Quando o governo alemão decidiu “subir de nível” a Alemanha Oriental após a reunificação, acabou gastando cerca de £ 2 trilhões para fazê-lo. Isso é centenas de vezes mais do que o governo Johnson anunciou para seu esquema de nivelamento de “governo forte”.Este rápido retorno à austeridade não é exclusivo da Grã-Bretanha. Nos Estados Unidos, uma moratória sobre despejos chegou ao fim, o que deve resultar em 750 mil famílias desabrigadas. O aumento nos pagamentos do vale-refeição também está terminando neste mês, e a maioria dos estados já aboliu o acréscimo semanal de US$ 300 do seguro-desemprego, o que significa que os benefícios dos EUA voltarão ao seu padrão extremamente austero.Três quartos dos governos da área do euro deixaram suas políticas de moratória da dívida expirarem em julho. E as taxas de juros também estão geralmente subindo na tentativa de conter a inflação e os empréstimos.Se tivéssemos entrado em uma nova época de pós-austeridade, keynesiana, de governo forte, não veríamos um retorno a todas as políticas fiscais da “era neoliberal” de austeridade após a recessão mais devastadora da história. Mas é exatamente isso que estamos testemunhando.Aumento do seguro nacionalAlguns interpretaram o aumento de impostos para arrecadar fundos para o NHS e para a assistência social na Grã-Bretanha como prova de que os conservadores de Johnson são hoje um partido profundamente diferente do que eram. Ou seja, que eles se tornaram um partido de “taxar e gastar” como o “Velho Trabalhismo”.Na verdade, isso prova exatamente o oposto. Claramente, o aumento do financiamento para o NHS reflete as circunstâncias únicas da pandemia, que tornou o financiamento do NHS uma necessidade política e econômica.E o aumento do financiamento para a saúde e especialmente para a assistência social permanece muito, muito aquém do que é necessário.“Praticamente nenhum dinheiro extra está indo para os cuidados, não mais do que os usuais remendos anuais para impedir o colapso total, me diz Torsten Bell, da Resolution Foundation … Cerca de metade dos gastos das autoridades locais com os cuidados vai para pessoas mais jovens com deficiência, e não há nada nesses planos para eles. Não haverá mais dinheiro para profissionalizar e pagar a equipe assistencial, com 170 mil vagas previstas até o final do ano. Não chega nem perto de substituir o corte de quase £ 8 bilhões nos orçamentos de assistência municipal durante a década de austeridade.” (The Guardian, 9 de setembro de 2021)Este financiamento extra deve ser levantado, não a partir da tributação progressiva da renda, mas das contribuições para o Seguro Nacional (NIC), das quais, como nos dizem, os conservadores gostam muito porque a carga recai sobre os trabalhadores, em vez de ser apenas carregada por seus amigos das grandes empresas.Em outras palavras, este é um imposto regressivo. Em vez de tributar os ricos, os trabalhadores estão sendo tributados. Nada mais é do que uma continuação da política de austeridade de fazer os trabalhadores pagarem pela crise capitalista.Isso também revela o aumento do poder do Tesouro. Houve muitos relatos de uma luta pelo poder entre Boris Johnson e o chanceler Rishi Sunak, com o último representando uma posição conservadora pró-austeridade clássica. O fato de que esse aumento mínimo e absolutamente necessário de financiamento tenha sido concedido por meio de um aumento do NIC prova que a austeridade veio para ficar.Novo período: mesmo sistema podreSim, estamos em uma nova época. Naturalmente, isso implicará em mudanças na política dos governos capitalistas. Isso não significa uma mudança ideológica fundamental que acabará com a austeridade. O papel da ideologia “neoliberal” sempre foi muito exagerado pelos reformistas que acreditam que um capitalismo mais agradável é possível e representa a norma. Essa ideologia não é a causa das políticas anti-classe trabalhadora, que dominaram nos últimos 40 anos.A austeridade realmente começou na Grã-Bretanha antes de Thatcher. Foi o governo trabalhista de James Callaghan que introduziu a austeridade em 1976, completamente contra sua ideologia e programa professados, como resultado de uma crise econômica. O mesmo aconteceu com Mitterand na França.Da mesma forma, governos de direita frequentemente desprezam as políticas de austeridade quando lhes convém. O estado britânico nunca foi reduzido por Thatcher, ela apenas cortou os gastos sociais. Embora o tratado de Maastricht impusesse austeridade à União Europeia (UE), os maiores países como a França e a Alemanha sempre escaparam ignorando-o (mesmo que o tenham pressionado de início).No rescaldo da crise de 2008, a “ortodoxia fiscal” foi totalmente abandonada: os bancos foram resgatados e o dinheiro foi impresso. Ao mesmo tempo, os mesmos governos que promulgavam essas políticas impunham austeridade maciça.Tentar olhar para isso através de uma lente “ideológica” não faz sentido. A austeridade é supostamente um produto do neoliberalismo, mas essa ideologia também deve se opor estritamente a aumentos exorbitantes na oferta de dinheiro e resgates, que ocorreram em grande escala depois de 2008.O que realmente define o momento atual é o fato de que a classe dominante está dividida e não tem um plano real. A classe dominante foi forçada a abrir as torneiras e a gastar para evitar uma explosão social no início da pandemia em 2020. Uma ala aponta ansiosamente para as enormes dívidas que se acumularam e que continuam a se acumular e exigem um retorno à austeridade por medo de acabar em falência nacional. Outra ala aponta que um retorno à austeridade pode causar inquietação social à medida que a raiva borbulha. Ambos estão certos.Essas divisões existem há mais de uma década e estão piorando. O fato de o governo alemão ter começado a entrar em conflito com o FMI sobre a questão da austeridade demonstra esse fato. Essa confusão representa o beco sem saída do capitalismo, e é também por isso que não há coerência nas políticas que vemos.Sim, o apoio político à austeridade foi destruído na última década. Isso, combinado com o suporte de vida que a economia capitalista exigiu na pandemia, forçando figuras como Johnson e Joe Biden a fazerem concessões temporárias e grandes gastos.Esta situação política fez com que Johnson se apresentasse como anti-austeridade, e esse é um fato profundamente importante que o movimento trabalhista deve entender – eles devem tirar vantagem da oposição de massa à austeridade, à desigualdade e até mesmo ao capitalismo como um todo para lutar pelo socialismo, ao invés de espalhar ilusões em Johnson.Mas a necessidade econômica da austeridade sob o capitalismo, uma vez que os trabalhadores possam voltar a trabalhar, é mais forte do que nunca. Daí o fato de que Johnson e outros líderes estão realmente retornando à austeridade.A questão é que o “neoliberalismo” não representou uma aberração ideologicamente motivada para o capitalismo. Na verdade, foram o boom do pós-guerra e as reformas que vieram com ele que foram anormais ao capitalismo. A austeridade é simplesmente “business as usual” sob este sistema, e só vai piorar à medida que as realidades da crise e da pandemia se instalam. A única maneira de escapar é abolindo o sistema capitalista e substituindo-o pelo socialismo.