Feliz Ano Novo – para alguns

Começa 2021 e Alan Woods dá uma olhada na situação mundial. Enquanto alguns poucos bilionários ficam ainda mais ricos, a maioria está presa na ratoeira entre a pandemia e a pobreza. A classe trabalhadora está começando a flexionar a musculatura preparando-se para batalha que se aproxima.


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“Quem está rindo o faz porque não ouviu as más notícias” (Bertolt Brecht)

“A esperança brota eterna no peito humano”. As célebres palavras do grande poeta inglês do século 18, Alexander Pope, contêm uma profunda verdade sobre a psique humana. Em última análise, é a esperança que nos faz continuar. É o que nos sustenta nas provações e atribulações da vida.

Mesmo nos momentos mais sombrios, quando nos sentimos oprimidos pelas dificuldades que surgem de todos os lados, é essa crença teimosa de que as coisas acabarão por melhorar que nos dá a força moral necessária para continuarmos vivendo e lutando, mesmo quando as probabilidades parecem estar contra nós.

Mas o que aconteceria se toda esperança fosse extinta? Um mundo sem esperança seria realmente um lugar sombrio. Seria impossível viver em um mundo assim. E se tira a esperança das pessoas por um futuro melhor, está se tirando tudo o que resta de sua humanidade e dignidade.

O apagamento da esperança deixa apenas uma resposta possível, e essa resposta é o desespero. As pessoas podem responder ao desespero de diferentes maneiras. Basicamente, apenas duas estão abertas para elas. Uma é o caminho da passividade, da apatia e, em última análise, a conclusão de que a vida não vale a pena ser vivida. Mas existe outro caminho. Os seres humanos são criaturas muito teimosas e não chegarão de bom grado à conclusão de que não há saída. O segundo caminho é o caminho para a revolução.

Feliz ano novo?

Ao bater da meia-noite, quando 31 de dezembro se transforma em 1º de janeiro, é costume desejar aos amigos e familiares um feliz ano novo. Este ano não será diferente. O velho Pope estava certo: a esperança brota eterna no peito humano.

Então, como de costume, levantamos nossas taças e desejamos a todos um ano feliz, saudável e próspero, na esperança de que 2021 seja melhor do que 2020. Afinal, dificilmente poderia ser pior!

No entanto, no entanto… no fundo do coração, quantos de nós realmente acreditavam nesta previsão otimista? Seja dita a verdade, há pouquíssima evidência empírica para justificá-la.

A pandemia ainda está fora de controle, submetendo milhões de pessoas a sofrimento e morte desnecessários. O número total de casos de coronavírus em escala mundial no final de 2020 era de 82.421.447. E o número total de mortes registradas foi de 1.799.076.

Não há dúvida de que esses números oficiais subestimam consideravelmente a situação real. Quem em sã consciência pode acreditar nas estatísticas oficiais das pessoas que morreram desta terrível enfermidade na Índia?

É suficiente apontar para a flagrante falsificação de estatísticas visando minimizar o número de mortes por Covid-19 na Grã-Bretanha e em outros países chamados avançados para sublinhar o ponto.

E como as viroses não respeitam as fronteiras nacionais, nem mesmo os estados mais ricos são poupados. Algumas das piores estatísticas de qualquer país podem ser encontradas nos Estados Unidos, onde a Flórida é atualmente o epicentro da epidemia.

Um hospital de Los Angeles ficou tão sobrecarregado com os casos de Covid-19 que foi forçado a atender as vítimas da doença em uma loja de bijuterias. Essa é a situação real no país mais rico do mundo.

Uma questão de classe

Trotsky disse uma vez, assinalando as palavras do grande filósofo Spinoza, nossa tarefa é: “nem chorar, nem rir, mas compreender”.

Estamos constantemente sendo informados de que devemos nos unir para enfrentar um inimigo comum – um inimigo impiedoso, inexorável e invisível chamado Covid-19. “Estamos todos juntos nisso” – esse é o slogan falso e hipócrita, pelo qual os ricos e poderosos procuram desviar nossa atenção do fato óbvio de que a atual pandemia é também uma questão de classe.

Simplesmente não é o caso de que “estamos todos juntos nisso”. Muito pelo contrário. A pandemia serviu para expor as profundas divisões entre ricos e pobres: a verdadeira linha de separação que divide a sociedade entre aqueles que estão condenados a adoecer e morrer uma morte horrível e aqueles que não estão.

E logo após a pandemia veio a pior crise econômica dos tempos modernos. A crise econômica mundial atingiu duramente os EUA. Quarenta milhões de americanos entraram com pedidos de auxílio por desemprego durante a pandemia. Como sempre, são os pobres que mais sofrem.

Em 2019, o Fed [Banco Central americano – NDT] informou que quatro em cada 10 americanos não tinham dinheiro suficiente em suas contas bancárias para cobrir uma despesa inesperada de US$ 400. E nos primeiros meses de 2020, a situação piorou drasticamente.

Alarmada com o perigo representado por esta situação, a classe dominante foi obrigada a tomar medidas emergenciais. O Estado, que de acordo com a teoria do livre mercado, deveria desempenhar pouco ou nenhum papel na vida econômica, tornou-se agora o único suporte a sustentar o sistema capitalista.

Em março, legisladores dos EUA aprovaram mais de US$ 2,4 trilhões (£ 1,7 trilhão) em ajuda econômica para empresas e famílias, em uma tentativa de amenizar a crise econômica sofrida por milhões de famílias. Na verdade, a maior parte desse dinheiro foi gasta em generosas doações aos ricos. Mas o dinheiro dado aos desempregados sem dúvida serviu para amenizar os efeitos da crise nas camadas mais pobres e vulneráveis ​​da sociedade.

Mas o apoio tem diminuído desde o verão e vários programas importantes – incluindo os benefícios para trabalhadores desempregados e pessoas desempregadas por mais de seis meses – deveriam expirar no final de dezembro. Como o governo retirou o apoio, um número crescente de pessoas está ficando sem alimentação adequada ou se tornando inadimplente com o aluguel e outras contas.

Fome nos EUA

Muitas pessoas agora se encontram em uma situação desesperadora. Tendo repentinamente perdido seus empregos, enfrentam a perda de suas casas. Elas não têm renda e não têm dinheiro suficiente para colocar comida na mesa. No país mais rico do mundo, milhões de famílias estão passando fome.

A insegurança alimentar dobrou desde o ano passado, atingindo o nível mais alto desde 1998, quando os dados sobre a capacidade das famílias americanas de obter alimentos suficientes foram coletados pela primeira vez. Um em cada oito americanos relatou que às vezes ou frequentemente não tinha comida suficiente, de acordo com uma pesquisa recente do censo.

O San Francisco-Marin Food Bank, que opera em alguns dos condados mais ricos dos Estados Unidos – São Francisco e Marin – atende cerca de 60 mil famílias, o dobro de seu nível pré-Covid. Em 14 de dezembro, a BBC News informou:

“Embora a fome não seja nova na América, a pandemia teve um grande impacto. A insegurança alimentar tornou-se um problema nacional generalizado, sem poupar sequer algumas das regiões mais ricas.

“Desde o início de novembro, não muito longe do Trump National Golf Club, na Virgínia, em uma área que costumava ter uma das taxas de fome mais baixas do país, Loudoun Hunger Relief alimentou entre 750 e 1.100 famílias por semana – um aumento médio de 225% em relação a sua média semanal pré-pandêmica.

“’Vimos pessoas que simplesmente nunca precisaram acessar esse tipo de recurso antes’, diz a diretora executiva Jennifer Montgomery.

“Era óbvio que estavam à distância de um ou dois salários de terem problemas sérios”.

“Meu orgulho se foi”

Vejamos Omar Lightner, um caminhoneiro de 42 anos da Flórida. Ele perdeu o emprego em fevereiro por causa da pandemia. Desde então, vive com suas economias em um motel em Jacksonville com sua esposa e filhos. Seu dinheiro está se esgotando rapidamente.

Minhas economias eram de US$ 22 mil (R$ 120 mil) quando optamos pela estadia prolongada”, disse Lightner. “Isso nos levou cerca de US$ 17.300. O resto foi para o vale-refeição. Isso ajudou muito. Mas temos duas crianças com autismo severo; há remédios e terapia para pagar”.

Enquanto Lightner continua à procura de trabalho, sua maior e mais imediata preocupação é como garantir um lar para sua família. Eles estão com quatro semanas de atraso no aluguel e agora enfrentam o despejo.

Como parte da política de despejo do motel, itens considerados não essenciais podem ser removidos do quarto. Esta semana, foi a TV, algo que o casal precisa desesperadamente para acalmar Jamal, cujo autismo significa que ele não consegue falar.

“Somos uma família de cinco pessoas, não há abrigos disponíveis para nos receber no momento”, disse Lightner.

“Meu orgulho se foi. Estamos praticamente sem teto agora. E eu sempre fui um homem que sempre gostou muito do orgulho. Trabalhei toda a minha vida. Sempre tivemos uma bela casa e bons veículos.

“Sei como cresci – tive que trabalhar para conseguir essas coisas. E foi tirado sem culpa minha”.

Essa é a face real e brutal do capitalismo no século 21. Não há outra. No dia primeiro de janeiro de 2021, para pelo menos 12 milhões de cidadãos americanos, as palavras Feliz Ano Novo soaram amargas e vazias.

Um feliz ano novo para os ricos

Mas ei! Não vamos ficar tão amargos. As más notícias não foram tudo. Em meio a este mar sem fim de miséria humana, sofrimento, fome e morte, algumas pessoas se deram muito bem.

Em uma época em que mais de 40 milhões de americanos estavam pedindo o auxílio desemprego, os bilionários viram sua riqueza aumentar em mais de meio trilhão de dólares. Para essas pessoas, 2020 foi um ano muito feliz. E não há absolutamente nenhuma razão para duvidar que 2021 será ainda mais feliz.

Vejam o caso do chefe da Amazon, Jeff Bezos. Ele se tornou a primeira pessoa com uma riqueza total declarada de mais de US$ 200 bilhões. Desde o início de março, quando os EUA viram suas primeiras mortes por coronavírus, a riqueza de Bezos aumentou em US$ 74 bilhões. Então esse é um motivo animador!

Bezos agora ganha mais dinheiro por segundo do que um trabalhador americano típico ganha em uma semana. O homem americano médio, com diploma de bacharel, ganhará cerca de US$ 2,2 milhões durante a vida, Bezos ganha cerca de US$ 2,2 milhões em 15 minutos!

Com seus US$ 200 bilhões, sua fortuna é mais que o dobro da fortuna de toda a monarquia britânica e é tão grande quanto o PIB de países inteiros.

Ele também não estava sozinho em sua boa sorte. O magnata dos cassinos Sheldon Adelson viu sua riqueza aumentar em US$ 5 bilhões, enquanto Elon Musk teve um aumento de US$ 17,2 bilhões. Quando você soma os números, os bilionários nos Estados Unidos aumentaram seu patrimônio líquido total em US$ 637 bilhões durante a pandemia de Covid-19 até agora.

Como já assinalamos, grande parte de sua nova riqueza veio diretamente das generosas doações do erário público. Da enorme quantidade de dinheiro distribuída pelo governo para neutralizar a crise, a maior parte foi direto para os bolsos do 1% mais rico.

Leis e brechas tributárias favoráveis ​​à riqueza mantêm esses bilionários no topo. E essas são apenas as vias legais que os ricos usam para evitar o pagamento de impostos. Em 2017, os pesquisadores estimaram que cerca de 10% do PIB mundial estavam armazenados em paraísos fiscais offshore. Um estudo de 2012 descobriu que até US$ 32 trilhões estavam sendo mantidos além mar pelas pessoas mais ricas do mundo.

O abismo que separa os que têm dos que não têm se tornou um abismo intransponível, aprofundando a polarização social e política e criando uma situação explosiva na sociedade. Este fato foi notavelmente sublinhado pelos acontecimentos em Washington nos últimos dias.

A última resistência de Donald J. Trump

Formar uma visão racional sobre o funcionamento do cérebro retorcido de Donald Trump é uma tarefa digna de intelectos muito mais poderosos do que o possuído pelo autor das presentes linhas. No entanto, não é totalmente impossível elaborar uma hipótese fundamentada a respeito de seus motivos no presente caso.

O Congresso estava em um impasse desde o verão com um novo pacote de estímulo, devido ao coronavírus, que deveria ajudar cerca de 12 milhões de trabalhadores que enfrentavam a retirada dos benefícios da ajuda em 31 de dezembro.

Os republicanos e democratas finalmente concordaram com um projeto de lei que estenderia o auxílio-desemprego até o final de março, entre outros benefícios. Mas, para espanto de todos, o presidente se recusou a assinar. Trump agora protestava que a quantia a ser dada aos destinatários era mesquinha, o que era patentemente verdade, e que ele estava do lado dos americanos pobres contra um Congresso de mão fechada, o que era patentemente falso.

O fato é que a quantia miserável decidida foi o resultado das táticas de bloqueio dos republicanos – isto é, do próprio partido de Donald Trump. Se ele se opusesse a isso, poderia ter deixado seus pontos de vista claros há mais tempo, economizando tempo e problemas. Mas ele não fez tal coisa.

Na verdade, ele endossou a proposta original e ficou em silêncio até o último momento, quando a conta caiu em sua mesa, apenas algumas semanas antes de receber uma ordem de despejo para desocupar o Salão Oval. As duas coisas claramente não estavam relacionadas.

Duas coisas são muito claras aqui. A primeira é que Donald J. Trump está muito apegado à sua posição como o presidente da maior potência do mundo e não tem a menor pressa em fazer as malas. Pelo contrário, ele pretende agarrar-se ao poder até o último momento, com o mesmo desespero com que um homem se afogando se agarra a um pedaço de palha.

Infelizmente, o estoque de palhas do presidente diminuiu drasticamente nas semanas desde a eleição. Em uma ação desesperada de retaguarda, uma reminiscência da última resistência de Custer [George Armstrong Custer – oficial do exército americano derrotado e morto na batalha de Little Big Horn contra uma coalizão de indígenas americanos em 1876 – NDT], Donald Trump soprou uma última e desafiadora corneta para reunir suas tropas à bandeira.

Para seu imenso pesar, apenas um punhado de senadores republicanos respondeu ao chamado. Mesmo seus partidários mais leais na hierarquia do Partido Republicano, pesando na balança do equilíbrio de forças, chegaram à conclusão lógica de que a discrição é a melhor parte da coragem.

Para piorar a situação, algum delator sorrateiro (seus números estão se multiplicando diariamente) divulgou uma gravação do presidente tentando intimidar o secretário de estado da Geórgia, Brad Raffensperger, para “encontrar” 11.780 votos a fim de anular a vitória de Joe Biden naquele estado. Isso provavelmente foi um fator na decisão dos senadores republicanos. Eles o abandonaram como ratos abandonam um navio que está afundando.

Esses atos de deslealdade covarde são profundamente ofensivos para um homem que há muito tempo não está acostumado a qualquer tipo de insubordinação. Imaginar que uma traição dessa magnitude ficaria impune era totalmente impensável. E assim, enquanto outras pessoas estavam ocupadas embrulhando seus presentes de Natal, nosso Donald estava preparando uma última surpresa de Natal para seus ex-amigos e aliados – uma que eles não esqueceriam tão rapidamente.

E mesmo que isso significasse que milhões de americanos pobres passariam fome, ele entraria para a história como o presidente que queria dar mais dinheiro aos pobres. Isso era mentira, é claro, já que este presidente elevou a arte de mentir a níveis inteiramente novos.

Mas o principal não é o que realmente é verdade, mas o que as pessoas acreditam ser verdade. E o que as pessoas acreditam será muito útil na próxima eleição presidencial, quando Donald J. Trump, ao contrário de Custer, disputará novamente.

Pode-se imaginar a sensação de maligna alegria com que o presidente repentinamente retirou sua mão do documento ofensivo, lançando assim uma granada nas fileiras abaladas dos republicanos no Congresso.

Aqui estão, meus bons amigos! Feliz Natal e um Feliz Ano Novo!

Donald J Trump teve a satisfação de saber que, mesmo que tenha sido forçado a deixar a Casa Branca, o terá feito com uma explosão, e não com um gemido. A mudança causou consternação no Congresso. Mas isso não era nada comparado com o que estava por vir.

O confronto

A democracia burguesa é uma planta muito frágil, que só pode florescer em certos solos bem nutridos. É historicamente um privilégio detido apenas pelas nações capitalistas mais avançadas e prósperas, onde a classe dominante possui excedente de riqueza suficiente para fazer concessões à classe trabalhadora, embotando assim o gume da luta de classes e evitando um conflito aberto entre ricos e pobres.

Por muito tempo – mais de 100 anos no caso de países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha – a classe dominante conseguiu estabelecer um certo grau de equilíbrio político e social, governando não pelo uso da força direta, mas sim por uma espécie de acordo de cavalheiros, um compromisso entre as classes antagônicas.

No caso da Grã-Bretanha, isso foi alcançado por um sistema de dois partidos – os partidos Conservador e Trabalhista – que se alternavam no governo em intervalos regulares, sem nunca desafiar o governo do capital. Um arranjo semelhante existia nos Estados Unidos com a divisão do poder entre republicanos e democratas.

Na realidade, esse compromisso foi uma máscara que serviu para ocultar as divisões fundamentais da sociedade e evitar um sério desafio ao status quo. Nas palavras do grande escritor americano Gore Vidal: “Nossa república tem um partido – o partido da propriedade – com duas alas de direita”. Mas a crise do capitalismo mudou tudo. A divisão acentuada e crescente entre ricos e pobres levou o antigo consenso ao colapso.

Em toda parte, sob a aparente calma superficial, há um descontentamento fervilhante, que se revela em surtos periódicos de fúria popular contra a velha ordem, suas instituições, seus partidos políticos, seus líderes, sua moralidade e valores. Esse descontentamento, é verdade, carece de uma expressão política clara. É confuso, incoerente e às vezes pode até assumir um aspecto reacionário.

Essa falta de clareza não é surpreendente. É o resultado da fraqueza do fator subjetivo – do fato de que as forças do marxismo genuíno foram jogadas para trás por todo um período histórico, deixando o campo aberto a todos os tipos de reformistas confusos e reformistas de esquerda que, por não terem claras as próprias ideias são organicamente incapazes de fornecer soluções para os problemas candentes enfrentados pelas massas.

Em seu desespero para encontrar uma saída da crise, as massas estão buscando uma expressão e uma saída para sua raiva com relação às injustiças da atual e desacreditada ordem social e política. Esse descontentamento pode ser aproveitado por demagogos de direita inescrupulosos do tipo Donald Trump.

Mas em tais movimentos confusos e heterogêneos, é essencial que aprendamos a distinguir o que é reacionário do que é um reflexo de um protesto incoerente contra o status quo, e não sermos desviados por fatores secundários e pelo impressionismo emotivo.

Impressionistas superficiais como Paul Mason na Grã-Bretanha e muitos outros da chamada esquerda internacional veem apenas os elementos reacionários no trumpismo, que eles tolamente identificam com o fascismo, sem mostrar a menor compreensão do que o fascismo realmente é. Essa confusão não pode nos ajudar a compreender o real significado dos fenômenos importantes.

Esse absurdo os leva diretamente ao pântano das políticas de colaboração de classe. Ao avançar a falsa ideia do “mal menor”, ​​eles convidam a classe trabalhadora e suas organizações a se unirem ao inimigo de classe, os liberais burgueses, que supostamente defendem a “democracia”.

Pior ainda, por insistir constantemente sobre o alegado perigo do fascismo, eles potencialmente desarmam a classe trabalhadora quando esta última se confrontar com formações fascistas genuínas no futuro. Como veremos, os estrategistas sérios do capital entendem o que está acontecendo muito melhor do que os falsos esquerdistas e ex-marxistas como Paul Mason.

Mas voltando aos eventos em Washington. No fundo, o que eles indicam é o fato de que a polarização da sociedade atingiu o ponto crítico em que as instituições da democracia burguesa estão sendo testadas até a destruição. É por isso que a classe dominante e seus representantes políticos em todos os lugares estão horrorizados com a conduta de Donald J. Trump.

Como estrategista político, Trump não é levado a sério. Empirista ignorante, seu único objetivo na vida é a autoprojeção e a manutenção do poder e do prestígio. Esta é realmente uma receita muito simples para um homem que não possui nenhum tipo identificável de princípio. E embora ele não seja particularmente inteligente, foi dotado por seu Criador com uma dose inalienável de baixa astúcia animal.

Trump nunca se conformou com a ideia de perder o cargo em algo tão vulgar como uma eleição. Ele já havia decidido de antemão que os resultados eram fraudados (que outra explicação possível poderia haver para o fracasso?) Em consequência, suas ações eram, portanto, inteiramente previsíveis.

Sentindo-se traído por seus parceiros, os líderes republicanos (muitos dos quais o odeiam, mas todos o temem), ele se voltou para seu único ponto de apoio confiável: sua base de massa, que, apesar de tudo, permanece inabalavelmente leal ao homem que veem como sua voz e sua única esperança em uma Washington cínica e completamente corrupta.

Portanto, não foi surpreendente que ele tentasse mobilizar essa base de massa no que pode ser provavelmente o último lance de dados desesperado de um jogador. Sem dúvida, isso foi uma coisa arriscada de se fazer, mas nosso Donald, como todos os jogadores, parece prosperar em jogadas arriscadas, especialmente quando as apostas são tão altas.

No entanto, certas coisas fluem disso. O homem que, por suas ações, aprofundou todas as linhas de fratura na sociedade americana e criou algo muito parecido a um estado de guerra civil entre democratas e republicanos, agora declarou guerra ao seu próprio partido, ameaçando dividir o partido republicano de cima a baixo.

Seus discursos maníacos visavam claramente incitar a multidão, já furiosa fora da Casa Branca, a atacar o Congresso e, assim (ele esperava), impedir a confirmação da vitória eleitoral de Joe Biden. Mas era perceptível que seu principal alvo não eram os democratas, mas, precisamente, os republicanos no Congresso, e particularmente o vice-presidente Mike Pence, a quem ele animou a impedir a realização da sessão.

A esta altura, no entanto, Pence e os outros principais líderes dos republicanos decidiram que já era o suficiente. Na verdade, eles romperam com Trump, e Trump rompeu com eles. Feridas profundas foram infligidas ao Partido Republicano por essas ações, que não serão facilmente cicatrizadas. Uma divisão aberta entre os republicanos não está de forma alguma descartada.

É difícil prever se Trump tem outros truques na manga antes da posse do novo presidente. Por sua reação inicial, parece que ele perdeu o equilíbrio na enxurrada de ataques de todos os lados e está tentando bater em retirada. Isso confundirá sua base, sem satisfazer seus inimigos no Congresso, que exigem sua destituição imediata.

Uma coisa é certa. A classe dominante não gostou de sua última façanha, para a qual a polícia (por motivos que não são claros) parecia estar desprevenida. Podemos ter certeza de que no Dia da Posse, as forças da lei e da ordem serão mobilizadas para garantir que não haverá repetição do caos de ontem, que qualquer um que tentar estragar a festa será recompensado com o crânio rachado.

Donald Trump, percebendo finalmente que o jogo acabou, promete que irá embora em silêncio. Ele o faz com plena consciência de que a alternativa é ser escoltado das instalações presidenciais pelos garotos de azul até a viatura policial mais próxima disponível. Sempre assumindo que não foi previamente destituído por um novo impeachment – desta vez sob a acusação mais séria de “insurreição” contra a República.

Naturalmente, isso não será o fim da questão. Pelo contrário, o verdadeiro drama apenas começou. Tendo conquistado duas cadeiras do Senado na Geórgia, Joe Biden terá agora um controle bastante seguro do Congresso. Ele não terá desculpa se não seguir as políticas que seus apoiadores esperam.

Mas o aprofundamento da crise econômica, agravada por dívidas colossais, significa que o governo Biden vai muito rapidamente decepcionar as esperanças dos milhões que votaram nele como “o mal menor”. Um novo e tempestuoso período de luta de classes se abrirá agora, o que transformará a sociedade americana de alto a baixo, abrindo o caminho para desenvolvimentos revolucionários.

Os estrategistas do capital tiram conclusões

As consequências disso estão se tornando cada vez mais evidentes para os representantes mais perspicazes da classe dominante, que têm uma compreensão muito mais clara das perspectivas do que os estúpidos e impressionistas “esquerdistas” que não podem ver nada além da ponta do nariz.

O Financial Times em 29 de dezembro publicou um artigo com o título: “Uma forma melhor de capitalismo é possível”. Foi assinado pelo conselho editorial e, portanto, carrega o selo de aprovação editorial de uma das revistas mais conceituadas da burguesia. Por isso, vale a pena citar extensamente o artigo.

Nele lemos o seguinte:

“O sossego do período de férias de Natal é um momento para lembrar como a história da Natividade descreve a família de Jesus: enviada à estrada por ordens administrativas absurdas, deixada sem acomodação e entrando em trabalho de parto em condições indignas.

“Podemos notar como sua precariedade também pode descrever uma subclasse nas sociedades mais ricas que a humanidade já conheceu. A pandemia lançou uma luz dura sobre as partes vulneráveis ​​dos mercados de trabalho dos países ricos.

“A maioria de nós depende – às vezes literalmente por toda a vida – de pessoas abastecendo prateleiras, entregando alimentos, limpando hospitais, cuidando de idosos e enfermos. Ainda assim, muitos desses heróis anônimos são mal pagos, sobrecarregados de trabalho e sofrem inseguranças e oportunidades de tarefas imprevistas durante o trabalho.

“Um neologismo cunhado para descrevê-los – o “precarizado” – é adequado. Nas últimas quatro décadas, o trabalho não conseguiu garantir rendimentos estáveis ​​e adequados para um número crescente de pessoas. Isso se mostra nos salários estagnados, nas rendas erráticas, nos amortecedores financeiros inexistentes para emergências, na baixa segurança no emprego e nas brutais condições de trabalho – ao ponto de chegarmos a episódios grotescos como o de uma mulher dando à luz em um cubículo de banheiro por medo de perder um turno.

“Muitos sofrem um risco crescente de ficar sem teto e de epidemias de doenças relacionadas ao álcool e drogas. Os sistemas de benefícios podem ajudar – mas também podem aprisionar pessoas já vulneráveis ​​em labirintos administrativos Catch-22s [uma situação paradoxal da qual um indivíduo não pode escapar por conta de regras limitantes contraditórias – NDT].

“Este é um problema antigo, mas se intensificou fortemente em 2020. A maioria dos empregos no precariado exige presença física para o trabalho manual, deixando os trabalhadores mais expostos ao contágio do coronavírus e à perda de renda com os bloqueios”.

O problema central é exposto aqui com admirável clareza. mas qual é a solução? O autor nos informa que:

“É um imperativo moral ajudar os mais necessitados. Mas tirar as pessoas da precariedade econômica também é muito do interesse dos que estão em melhor situação”.

Sentimentos louváveis, de fato! Essas linhas trazem à mente a famosa história de Charles Dickens, A Christmas Carol: em que Scrooge, o capitalista misantropo e ganancioso é gradualmente convencido a corrigir seus caminhos, a compartilhar parte de sua riqueza com os pobres e vulneráveis e a se tornar, em geral, um velho cavalheiro totalmente agradável e gentil.

Este final sentimental é, sem dúvida, a parte mais fraca da história e transmite apenas os desejos piedosos e os devaneios do autor. A parte realmente valiosa é o seu início, que descreve com precisão a verdadeira moralidade do capitalismo.

Os autores do artigo do Financial Times parecem desconfortavelmente cientes da inutilidade de qualquer tentativa de apelar à melhor natureza da minoria obscenamente rica que domina a sociedade com base em um suposto “imperativo moral de ajudar os mais necessitados”.

Isso já era evidente para Charles Dickens, que descreve as tentativas vãs de pessoas bem-intencionadas de obter uma doação de Scrooge para uma instituição de caridade de Natal:

“Não há prisões?” disse Scrooge. “Não existem casas de trabalho?”

“Elas ainda existem”, respondeu o cavalheiro,“gostaria de poder dizer que não”.

“Muitos não podem ir para lá; e muitos preferem morrer”.

“Se eles preferem morrer”, disse Scrooge, “é melhor fazer isso e diminuir o excedente populacional”.

Aqui temos a voz autêntica do capitalismo: a voz fria e calculista da economia de mercado, do reacionário Malthus: a verdadeira voz mesquinha, gananciosa, egoísta e cruel dos homens e mulheres do dinheiro – que permaneceu inalterada desde os dias de Dickens até os tempos atuais.

Percebendo a inutilidade de apelar para os instintos mais nobres dos capitalistas, ele apela para seus próprios interesses (sua ganância e egoísmo). Aqui estamos nós totalmente em terreno mais firme!

“Não é só os que estão em melhor situação que têm muito a perder, se a polarização econômica contínua levar à rejeição do capitalismo. Eles também têm muito a ganhar com isso”.

Mas nenhuma pregação moral terá qualquer efeito sobre essas criaturas, assim como não teve efeito sobre Scrooge. O que o fez mudar de ideia não foram imperativos morais, mas o medo – o medo e a ansiedade produzidos pelos fantasmas que Dickens enviou para assombrá-lo.

Portanto, o autor do artigo do Financial Times toma a sábia decisão de assustar os burgueses, confrontando-os com as consequências inevitáveis ​​da situação atual. É uma perspectiva muito mais assustadora do que o Espírito do Natal que ainda está por vir:

“Os grupos deixados para trás pela mudança econômica estão cada vez mais chegando à conclusão de que os responsáveis ​​não se importam com sua situação – ou pior, que manipularam a economia para seu próprio benefício contra aqueles que estão à margem.

“Lentamente, mas com segurança, isso está colocando o capitalismo e a democracia em tensão um com o outro. Desde a crise financeira global, esse sentimento de traição alimentou uma reação política contra a globalização e as instituições da democracia liberal.

“O populismo de direita pode prosperar com essa reação enquanto mantém os mercados capitalistas no lugar. Mas, como não pode cumprir suas promessas aos economicamente frustrados, é apenas uma questão de tempo antes que os forcados saiam para o próprio capitalismo e para a riqueza daqueles que dele se beneficiam” (Ênfase minha, AW)

Sim, os estrategistas burgueses sérios entendem as implicações revolucionárias muito melhor do que os reformistas míopes. Eles podem ver que as violentas oscilações da opinião pública para a direita podem muito facilmente ser a preparação de oscilações ainda mais violentas para a esquerda, que as massas descontentes (armadas com forcados, para sugerir analogias com a Revolução Francesa ou a Revolta dos Camponeses) podem virar em uma direção anticapitalista.

O artigo continua:

“A epidemia de empregos inseguros e mal pagos reflete o fracasso em disseminar os métodos de produção mais avançados da fronteira da economia ao interior. A própria existência de um setor precarizado prova que recursos – humanos físicos e organizacionais – estão sendo desperdiçados”.

“Uma economia polarizada não é só injusta, também é ineficiente”.

Sim, tudo isso é perfeitamente verdade. O sistema capitalista é realmente esbanjador e ineficiente. Isso nós sabemos há muito tempo. Deve, portanto, ser substituído por um sistema diferente – baseado em uma economia harmoniosa e racionalmente planejada, na qual a força motriz é a satisfação das necessidades de muitos, não a corrida insana para obter riqueza obscena para poucos.

Essa conclusão é absolutamente inevitável. Mas está totalmente fora do alcance do nosso bem intencionado autor, que conclui (sem apresentar razões) que: “as alternativas são piores para todos”.

Nunca se explica porque isso é assim. O autor não consegue ver nada além do sistema capitalista existente e, portanto, sonha em reformá-lo para algo melhor. Mas o capitalismo não pode ser reformado, como os reformistas estúpidos imaginam. Eles se consideram realistas. Na realidade, são o pior tipo de utopia.

Para salvar o capitalismo, diz ele, seus adeptos devem “polir suas arestas mais ásperas”.

Os ventos estão mudando”, anuncia triunfantemente:

“Os políticos, de Joe Biden a Boris Johnson, têm mandatos para ‘reconstruir melhor’; os guardiões da ortodoxia econômica abandonaram a visão de que a desigualdade é o preço do crescimento. Pode-se fazer com que o capitalismo garanta a dignidade a todos”.

Que imagem linda!

Tudo se reduz, portanto, a sonhar com um tipo diferente de capitalismo – um capitalismo mais gentil, mais amável e mais humano, assim como Dickens sonhou com um Scrooge mais gentil, mais amável e mais humano. Desnecessário dizer que um dos sonhos é tão fútil e utópico quanto o outro.

Por que somos otimistas

“No geral, a crise está se aprofundando como a boa e velha toupeira que é” (de Marx para Engels, 22 de fevereiro de 1858).

O sistema capitalista está doente, doente de morte. Os sintomas são muito claros. Sob a superfície, por todos os lados, há uma fúria fervlhadorente, raiva, amargura e ódio em relação ao sistema existente e sua moralidade hipócrita, suas injustiças, desigualdades intoleráveis e indiferença ao sofrimento humano.

As velhas instituições, que antes eram consideradas com respeito, são agora vistas com total desprezo pelas massas, que se sentem traídas e negligenciadas. Políticos, juízes, polícia, mídia, igrejas – todos são considerados estranhos e corruptos.

As instituições da democracia burguesa formal baseavam-se no pressuposto de que o abismo entre ricos e pobres poderia ser contido dentro de limites administráveis. Mas o crescimento contínuo da desigualdade de classe criou um nível de polarização social não visto há décadas.

Está testando os mecanismos tradicionais da democracia burguesa até seus próprios limites e além desses limites. Isso foi visto com muita clareza nos eventos nos EUA no ano passado.

As revoltas espontâneas que varreram o país após o assassinato de George Floyd e os eventos sem precedentes subsequentes, que precederam e acompanharam as eleições presidenciais, marcaram uma virada em toda a situação. Aqui, em embrião, temos o esboço de desenvolvimentos revolucionários no futuro.

O ano de 2021 será um ano como nenhum outro. Será um feliz ano novo, como preveem os otimistas? É claro que será um feliz ano novo para esta pequena minoria que tem motivos para ser feliz – menos de 1% da população que tem controle ilimitado sobre a riqueza produzida pela grande maioria.

Mas, para essa maioria, não pode haver dúvida de um feliz ano novo. Para eles, o futuro sob o capitalismo só pode ser sombrio. No entanto, continuamos teimosa e desafiadoramente otimistas com relação ao futuro – não o futuro do sistema capitalista, mas o futuro da luta de classes revolucionária que está destinada a derrubar o sistema de uma vez por todas.

O caminho para um futuro feliz depende de uma ruptura fundamental com o passado. A estrada que temos pela frente será difícil. A classe trabalhadora entrará em uma escola muito dura. Mas dessa escola tirará as lições necessárias.

Depois de um longo período de relativa inatividade, a classe trabalhadora está flexionando os músculos, como um atleta que se prepara para entrar em uma disputa decisiva. Isso, e somente isso, nos dá esperança e otimismo no futuro da humanidade.

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