Democracia Operária na Revolução Russa (Parte 1)

A Revolução Russa é o evento mais grandioso da história humana, pois pela primeira vez a classe trabalhadora não apenas liderou a Revolução, mas também tomou diretamente o poder em suas próprias mãos, e começou a transformar a sociedade. Esse ato é caluniado como antidemocrático, quando na realidade desenvolveu a democracia mais abrangente e revolucionária que o mundo já viu. Nesse artigo, Daniel Morley explica como isso funcionou na prática.

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“Camaradas, trabalhadores! Lembrem-se que agora vocês mesmos estão a frente do Estado. Ninguém irá ajudá-los se vocês não se unirem e tomarem em suas mãos todas as responsabilidades estatais. Seus Sovietes são a partir de agora os órgãos da autoridade estatal, corpos legislativos com poder total.

Reúnam-se em seus Sovietes. Os fortaleçam. Continuem com o trabalho vocês mesmos; comecem de baixo e não esperem por ninguém.”

Essas poderosas palavras de Lênin, dirigidas às massas russas dez dias após a tomada do poder, refletem fielmente sua verdadeira atitude perante a democracia operária. Um dia antes, Lênin havia feito o mesmo apontamento de maneira ainda mais detalhada.

“A atividade viva e criativa das massas é o fator principal da nova sociedade. Os trabalhadores precisam começar a organizar o controle operário em suas fábricas, revitalizar as fazendas com produtos industriais e comercializá-los em troca de trigo. Todo objeto, toda grama de pão deve ser contabilizada, pois socialismo é, acima de tudo, manter o recenseamento. O socialismo não é criado a partir de ordens do alto. Ele é um estranho para o burocratismo oficial e estúpido. O vigoroso e verdadeiro socialismo é uma criação das massas populares por si mesmas.”

Com essas proclamações revolucionárias, Lênin anunciou o maior evento na história, e o começo de uma era radicalmente nova. Não deixe que ninguém minta que a Revolução de Outubro foi antidemocrática. A Revolução Russa, conforme esses pronunciamentos mostram, inaugurou a forma de Estado mais completamente democratizada que já foi realizada.

Sob o capitalismo, ouvimos muito sobre diferentes tipos de democracia. Nossos políticos, mídia, intelectuais proeminentes, o establishment como um todo, nunca se cansam de exaltar orgulhosamente as virtudes da “democracia”, ao menos no abstrato.

Enquanto eles são vagos e abstratos, sejamos concretos. A democracia que eles clamam é na verdade apenas uma forma de democracia, a democracia burguesa. Isso, como Lênin disse, é como a democracia na Grécia Antiga – democracia para os possuidores de escravos. Ela apenas mascara a ditadura do capital.

A democracia operária é muito diferente, aliás é diametralmente oposta à democracia burguesa. A democracia burguesa é formal e artificial. Considerando que ainda assim ela existe – e sem desconsiderar que foi algo surgido do embate com a classe dominante ao longo de muitos séculos – os direitos e liberdades a ela associados dizem muito pouco sobre o que se é realmente livre para fazer. Todos nós temos a liberdade formal para votar – mas isso se dá no contexto de um sistema econômico que nós não temos controle. Um exemplo recente evidente é o referendo sobre a austeridade imposta pela União Europeia à Grécia, em que 61% da população votou contra a austeridade. Porém, isso foi devidamente ignorado, pois o referendo se contrapunha aos ditames dos bancos europeus mais importantes, e uma austeridade ainda mais brutal foi imposta como punição.

Que ao votar dentro desse sistema normalmente não se alcança quase nada, e que as decisões reais são controladas, dia após dia, pelos grandes bancos e outras figuras dirigentes da burguesia atrás das cortinas – é uma opinião amplamente difundida, e com razão. O Parlamento é basicamente um grupo de debates. No último período, as lutas dentro do Partido Trabalhista britânico têm sido muito instrutivas na medida em que a classe dominante manipula e limita o processo democrático nos bastidores. Sim, os trabalhadores podem ingressar e participar do Partido Trabalhista, o que é uma liberdade real. Porém, caso eles votem em um líder da esquerda, isso os levará a enfrentar uma oposição implacável de organizações como a Progresso – uma facção de direita do Partido financiada por bilionários. Em cada passo, a burguesia tem seu dinheiro e seus agentes puxando as cordas, enquanto os trabalhadores lutam por rendas escassas e não têm tempo para se dedicar à política. A democracia, no final das contas, é uma questão material, e acima de tudo, de classe.

O primeiro exemplo de um Estado Operário

A democracia operária é uma forma de domínio completamente diferente – é o domínio da maioria. Não é um conjunto de normas artificiais e fixas feitas para mascarar o que realmente está ocorrendo, nem serve mais para atrapalhar do que para fortalecer. A democracia operária coloca o poder real nas mãos do proletariado. É um desenvolvimento real, prático e inicialmente espontâneo.

Não é nenhum plano ideal inventado pelos marxistas. Ao contrário, nós o analisamos em eventos reais. O primeiro exemplo, no qual Marx e Lênin se inspiraram fortemente, foi a Comuna de Paris de 1871.

“[A Comuna de Paris] foi formada por conselhos municipais, escolhidos por sufrágio universal nos vários bairros da cidade, responsáveis e revogáveis a curto prazo. A maior parte de seus membros era naturalmente trabalhadores, ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna era pra ser um corpo operário executivo e legislativo ao mesmo tempo, e não parlamentar.

Ao invés de continuarem sendo agentes do Governo Central, a polícia foi completamente removida de seus atributos políticos, e se tornou um agente da Comuna responsável e revogável a qualquer momento. Assim ocorreu também com os oficiais de todos os outros setores da administração. Para qualquer membro da Comuna, qualquer serviço público tinha que ser realizado por um salário de um operário.

Em um esboço grosseiro de organização nacional, que a Comuna não teve tempo de desenvolver, é afirmado claramente que a Comuna deveria ser a forma política até mesmo da menor aldeia rural, e que nos distritos rurais o Exército Permanente deveria ser substituído por uma milícia nacional, com um tempo de serviço extremamente curto. As comunidades rurais de cada distrito deveriam administrar seus assuntos em comum por meio de uma assembleia de delegados na cidade central, e essas assembleias distritais deveriam novamente enviar deputados para a Delegação Nacional em Paris, com cada delegado sendo ao mesmo tempo revogável e vinculado ao mandato imperativo (instruções formais) dos seus eleitores… Ao contrário de decidir uma vez a cada três ou seis anos qual membro da classe dominante deveria deturpar os desejos do povo no Parlamento, o sufrágio universal foi usado para servir ao povo, constituído em Comunas” (Marx, The Civil War in France, The Third Address). [N.T.: em português “A Guerra Civil na França”, A Terceira Mensagem]

Dessa experiência inicial inspiradora e heroica, Marx, e depois Lênin, formularam os princípios gerais da forma de um Estado Operário democrático, que nós iremos discutir posteriormente. O principal ponto para nós aqui é que a democracia operária é o produto da experiência prática da classe trabalhadora, e reflete as verdadeiras necessidades da luta revolucionária dos trabalhadores para sua própria emancipação.

Foi também a partir dessa experiência que Marx desenvolveu o termo “ditadura do proletariado”. Com isso ele não quis dizer uma ditadura contra o proletariado, mas exatamente o que vimos na Comuna de Paris – a classe trabalhadora organizando a si mesma democraticamente como a classe dominante, e comandando a sociedade a partir de suas normas. Nos dias de Marx, o termo “ditadura” não tinha a má conotação que tem hoje em dia, e era na verdade uma referência à uma tradição da Roma Antiga.

Uma das abstrações da democracia burguesa é de que nós todos somos átomos iguais, pressupostos a comandarem uma quantidade igual de recursos e tempo, e, portanto, cada voto representa exatamente o mesmo que o voto seguinte. Contudo, atrás dessa ficção, encontramos a realidade de uma desigualdade material incrível, e, crucialmente, interesses divergentes de classes conflitantes. Entretanto, na democracia burguesa, essas verdades fundamentais são ignoradas, e, por trás das cortinas, a vasta riqueza dos capitalistas que comanda todo o resto.

Do ponto de vista dessas abstrações liberais, a democracia operária aparenta ser menos democrática, pois ela necessariamente exclui os capitalistas. Porém ela é assim formulada a partir das condições que ela floresce. Como uma democracia prática e verdadeira, isso é necessário. A democracia burguesa dá a todos o direito ao voto (ao menos após várias lutas que conquistaram o sufrágio universal) como um meio de esconder onde o poder realmente está, e para condenar o sistema democrático ao status de um círculo de discussões inútil.

Quando os trabalhadores formam um sindicato, eles convidam os patrões para as reuniões? Seria mais democrático se eles fizessem isso? Ou isso iria minar a habilidade do sindicato de discutir livremente e de colocar em prática suas decisões?

Democracia operária, em toda a sociedade, deve significar a ditadura do proletariado, assim como no local de trabalho deve significar a exclusão do patrão. Ela é honesta sobre isso. A democracia burguesa é na verdade a ditadura da burguesia, contudo ela não é honesta.

O sistema soviético

O Estado soviético foi construído por meio de um exemplo espontâneo, vivo e prático da democracia operária – os Sovietes. Eles foram a maior criação de todos os tempos da democracia operária. Muitas das suas regras e princípios foram inspirados por aquelas da Comuna de Paris, a primeira verdadeira experiência de poder operário.

“A nova constituição não fez muito para criar novas formas de governo, mas sim para registrar e regularizar aquelas que já estavam sendo estabelecidas por meio de uma iniciativa descoordenada no momento posterior ao levante revolucionário.

A palavra Soviete significa Conselho, ou então Comitê ou Assembleia. Os Sovietes foram inicialmente criados na Revolução de 1905, e então recriados em 1917, como organizações defensivas da classe trabalhadora. Informais e flexíveis, a sua forma dependia das necessidades e do nível de desenvolvimento da luta de classes. Geralmente, os trabalhadores e membros da comunidade local iriam eleger delegados de seus próprios locais de trabalho ou comunidades para participar do Soviete local, que iria debater assuntos pertinentes à Revolução, e então iria colocar as decisões em prática. A experiência de construir Sovietes facilitou o mais grandioso avanço de consciência política entre os trabalhadores” (EH Carr. The Bolshevik Revolution 1917-1932, vol. I, p. 134). [N.T.: em português, “A Revolução Bolchevique”]

Devido ao seu caráter espontâneo e informal, e devido às suas origens na Revolução, eles naturalmente assumiram o caráter de uma democracia baseada na classe social, ou órgãos das classes oprimidas lutando por sua emancipação. Nunca ocorreu a ninguém a ideia de excluir os ricos formalmente, pois eles nunca participaram dos Sovietes.

Embora sua primeira aparição tenha sido em 1905, muitos bolcheviques não conseguiram entender o significado dos Sovietes, mas Lênin entendeu. Para ele, eles não eram destinados a serem meramente comitês de defesa, mas órgãos potenciais de poder operário; o embrião de um novo Estado Operário, similar à Comuna de Paris. Essa ideia foi a diferença decisiva entre bolcheviques e mencheviques em 1917 – sendo que os últimos estavam liderando os Sovietes sem sequer compreendê-los – e inspirou o importantíssimo slogan que definiu a Revolução de Outubro: “Todo poder aos Sovietes!”.

Logo após a tomada do poder em 7 de novembro (no calendário moderno) de 1917, os Sovietes finalmente se tornaram o órgão de um novo Estado Operário, como Lênin havia previsto doze anos antes.

Em 16 de janeiro de 1918, a Declaração dos Direitos dos Trabalhadores e Explorados foi aprovada pelo Comitê Executivo Central de Toda a Rússia no Congresso dos Sovietes, e foi publicada no dia seguinte no Izvestia. Ela formalmente declarava que, em toda a Rússia, os Sovietes eram soberanos. Não surpreendentemente essa resolução, quando apresentada na Assembleia Constituinte rival no dia seguinte, foi rejeitada.

Mas nós não devemos esquecer que, incluída nessa vitória da democracia operária em uma revolução socialista, estava a realização de toda uma gama de liberdades democráticas burguesas em um grau nunca antes atingido. Ocorreu uma expansão massiva dos direitos e liberdades. As liberdades de expressão e reunião foram garantidas, e inclusive os trabalhadores eram nitidamente encorajados a se reunirem! A liberdade de religião (enquanto arrancava a igreja do seu status oficial e tomava sua vasta extensão de terras), liberdade de sexualidade, liberdade igual para homens e mulheres de se divorciarem e igualdade em todos outros aspectos do casamento, liberdade de aborto – tudo isso e ainda mais foi garantido pela Revolução de Outubro e pelo governo Soviético.

Em 3 de julho de 1918, o projeto da nova Constituição Soviética foi concluído para ser apresentado ao Quinto Congresso dos Sovietes mais tarde para aprovação. Ele declarava:

“O caráter federativo da República; a separação da Igreja do Estado e da escola da Igreja; liberdade de expressão, opinião e reunião para os trabalhadores, assegurados colocando à sua disposição os meios técnicos para produção de jornais, panfletos e livros assim como locais para as reuniões; a obrigação de todos cidadãos trabalharem, seguindo o princípio de ‘aquele que não trabalha, também não deve comer’ [isso era direcionado contra os indivíduos burgueses que viviam da exploração do trabalho dos outros, não aos proletários inválidos ou desempregados]; a obrigação de todos trabalhadores de serviços militares na defesa da República; o direito de cidadania para todos trabalhadores vivendo em território russo e de asilo para estrangeiros perseguidos por motivos políticos ou religiosos; e a abolição de toda discriminação com base na raça ou nacionalidade” (EH Carr. The Bolshevik Revolution 1917-1932, vol. I, p. 135, nossa ênfase).

É recorrente que a sociedade burguesa não consiga pôr em prática sequer “suas próprias” liberdades. No Reino Unido, com a “mãe dos Parlamentos”, nós temos outro parlamento (não eleito) com o direito de bloquear as legislações aprovadas na Câmara eleita. Ele é composto de nomeados, aristocratas e a anacrônica hierarquia eclesiástica. A cabeça do Estado britânico é a rainha, para quem os militares juram lealdade. É tarefa da Revolução Socialista de realizar completamente todas as liberdades democráticas, assim como ir adiante e colocar os trabalhadores organizados no poder e acabar com o capitalismo.

A Constituição Soviética declarava que o poder supremo na sociedade era:

“[O] Congresso de Sovietes de Toda a Rússia, composto por representantes dos sovietes urbanos na relação de um deputado para cada 25 mil habitantes e por representantes dos Sovietes provinciais na relação de um deputado para cada 125 mil habitantes. O Congresso de Toda a Rússia elege o Comitê Executivo Central de Toda a Rússia com não mais do que 200 membros que exercem todo o poder do Congresso quando o Congresso não está em sessão” (ibid, p.136).

Disposições similares eram feitas sobre como os Congressos de Sovietes regionais, responsável por regiões menores, seriam compostos de Sovietes locais ainda menores, que de acordo com a Constituição, “até [os] menores, são totalmente autônomos em questões locais, porém tendo que estar em conformidade em suas atividades com os decretos e resoluções gerais do poder central e das organizações soviéticas superiores”.

Em 1918, o Congresso de Toda a Rússia – que era composto não por políticos profissionais eleitos apenas uma vez a cada cinco anos, porém de delegados da classe trabalhadora de toda a sociedade – se encontrou quatro vezes, normalmente durante uma semana. Ele debateu com intensidade as questões fundamentais da Revolução e como construir uma nova sociedade. Especificamente, ele “autoriza, emenda e complementa a Constituição, direciona a política geral, declara paz e guerra, fixa o planejamento para a vida econômica nacional, vota o orçamento, regula os acordos financeiros e similares, legisla e anistia” (Serge, Year One of the Russian Revolution, 1992, p. 273). [N.T.: em português “Ano I da Revolução Russa”]

A Constituição Soviética conclama ao menos dois desses Congressos todos os anos, o que significaria que o Comitê Executivo prestaria contas e seria reeleito pelos delegados ao menos duas vezes no ano. O Comitê Executivo, ou um terço dos Sovietes locais, tinham o direito de chamar um Congresso emergencial. Esse organismo não era uma invenção dos bolcheviques. Na realidade, o primeiro Congresso foi feito em meados de 1917, antes que a Revolução de Outubro o tornasse soberano. Era um produto vivo da Revolução, criado pelos próprios trabalhadores, e, portanto, tinha uma legitimidade democrática aos seus olhos.

Os princípios da Comuna de Paris

Os princípios mais gerais desse tipo de democracia foram formulados por Lênin em “Estado e Revolução”, e inspirados pela experiência da Comuna de Paris (assim como dos Sovietes russos em 1905 e no começo de 1917). Eles são:

1. Eleições livres e democráticas com direito de revogação de qualquer funcionário público.

2. Nenhum funcionário público deve receber um salário maior do que um trabalhador qualificado.

3. Nenhum exército permanente, mas o povo armado.

4. Gradualmente, todas as tarefas de administração estatal devem ser desempenhadas rotativamente pelos trabalhadores: quando todos são “burocratas” em um turno, ninguém é um burocrata.

Esses são os princípios gerais e as palavras de ordem do poder proletário, as melhores regras pelas quais a classe trabalhadora mantem o controle democrático do seu Estado em suas mãos. No Sétimo Congresso do Partido Comunista Russo em 1918, Lênin também apontou os dez princípios do novo poder:

1. Unidade de todas as massas pobres e exploradas.

2. Unidade da minoria conscientemente ativa para a reeducação de toda a população trabalhadora.

3. Abolição do parlamentarismo, que separa o legislativo da autoridade executiva.

4. Uma unidade entre as massas e o Estado que será mais estreita do que as antigas formas democráticas.

5. Armamento dos trabalhadores e dos camponeses.

6. Mais democracia e menos formalismo, maiores facilidades para eleição e revogação de delegados.

7. Ligações estreitas entre a autoridade política e a produção.

8. A possibilidade de eliminar a burocracia.

9. A transição da democracia formal dos ricos e pobres para a verdadeira democracia dos trabalhadores.

10. Participação de todos os membros dos Sovietes na gestão e na administração do Estado.

Uma característica da Comuna de Paris que Marx destacou nitidamente foi a fusão dos poderes executivo, legislativo e judiciário. A democracia burguesa insiste em sua separação, com a desculpa que é uma proteção contra a “tirania”. Porém, tirania aos olhos dos liberais burgueses significa acima de tudo tirania estatal contra a propriedade privada, e propriedade para eles é a chave para a liberdade. A separação dos poderes serve na realidade para preservar o status quo capitalista, para garantir ao capital a liberdade para exercer seu domínio nos bastidores enquanto o Estado restringe seu próprio poder. A transformação socialista da sociedade é uma tarefa prática enorme, que requer todas as forças concentradas em um único ponto. A classe trabalhadora, com seu dedo no pulso da produção, deve exercer seu poder coletivo sobre a economia e a sociedade com o objetivo de reorganizá-la para atender às necessidades das massas, e acabar com a anarquia do livre mercado.

Os direitos políticos

Tornando os Sovietes soberanos, a Constituição tornou os direitos políticos nesse sistema exclusivos àqueles que trabalham, assim como aos soldados e aos inválidos; aqueles que empregam outros para trabalhar para eles foram excluídos de participar. Naturalmente, não havia restrição de gênero para exercer os direitos políticos. Os Sovietes podiam reeleger seus delegados a qualquer momento, caso estivessem insatisfeitos com eles. Conforme Lênin disse, “Todas as formalidades burocráticas e limitações desaparecem das eleições, e as massas por si mesmas determinam o ordenamento e o tempo das eleições com o livre direito de revogar aqueles que foram eleitos”.

Os Sovietes foram os verdadeiros órgãos de poder que os trabalhadores criaram por eles mesmos, eleitos diretamente nas fábricas e refletindo verdadeiramente seus desejos e poder. Eles não podiam envolver os capitalistas, que nunca sequer tentaram participar dos Sovietes. Para o sistema soviético ser o que ele precisava ser – o sistema mais democrático já criado – ele precisava se basear exclusivamente na luta viva das massas contra seus exploradores.

Lênin escreveu que os Sovietes eram originalmente entidades politicamente abertas e inclusivas, observando em “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky” (1918):

“A exclusão da burguesia de exercer os direitos políticos não é uma ferramenta necessária e indispensável para a ditadura do proletariado. E na Rússia, os bolcheviques, que muito antes de Outubro já colocavam o slogan da ditadura do proletariado, não disseram nenhuma palavra sobre avançar com a retirada dos direitos políticos dos exploradores. Esse aspecto da ditadura não foi feito aparentemente ‘de acordo com o plano’ de nenhum partido em particular; ele emergiu por si só no curso da luta… mesmo quando os mencheviques (que se comprometeram com a burguesia) ainda dominavam os Sovietes, a burguesia recusou-se a participar nos Sovietes por vontade própria, os boicotaram, se colocaram em oposição a eles e intrigaram contra eles. Os Sovietes surgiram sem nenhuma Constituição, e existiram sem nenhuma por mais de um ano (da primavera de 1917 até o verão de 1918). A fúria da burguesia contra essa organização independente e onipotente (pois essas questões estão todas interligadas) dos oprimidos; a luta, a inescrupulosa, egoísta e sórdida luta que a burguesia levantou contra os Sovietes; e, por último, a evidente participação da burguesia (dos Cadetes aos Socialistas Revolucionários de Direita, de Milyukov até Kerensky) no motim de Kornilov – tudo isso pavimentou o caminho para a exclusão formal da burguesia nos Sovietes”.

No mesmo trabalho, Lênin argumenta que, muito mais importante para a realização da democracia na prática, não é a garantia das liberdades formais (como a de expressão), mas as medidas práticas necessárias para realizá-las, que novamente devem ter um caráter de classe, portanto, era necessário nacionalizar e garantir o controle operário nos jornais, rádios, salas de reunião etc., para poder garantir o acesso dos trabalhadores a eles. Eles completaram essas demandas legalistas com um conteúdo material.

Como Lênin explicou,

“O velho aparato burguês – a burocracia, os privilégios da riqueza, da educação burguesa, de conexões sociais, etc. (esses privilégios reais são cada vez mais variados quanto mais a democracia burguesa é desenvolvida) – tudo isso desaparece sob a forma soviética de organização. Liberdade de imprensa deixa de ser uma hipocrisia, pois as gráficas e os estoques de papéis são tomados da burguesia. A mesma coisa se aplica às melhores construções, os palácios, as mansões e as casas senhoriais. O poder soviético tomou milhares de milhares dos melhores edifícios dos exploradores com um golpe, e dessa forma tornou o direito à reunião – sem a qual a democracia é uma fraude – um milhão de vezes mais democrático para a população. Eleições indiretas aos Sovietes não locais tornaram mais fácil realizar os Congressos de Sovietes, elas fizeram o aparato inteiro menos custoso, mais flexível, mais acessível aos trabalhadores e camponeses em um momento em que a vida estava fervendo e era necessário ser possível revogar rapidamente um deputado local ou delegá-lo a um Congresso Geral dos Sovietes.

Existe sequer um único país no mundo, mesmo entre os países burgueses mais democráticos, em que o operário médio do chão de fábrica, o operário agrícola médio da base da fazenda, ou o aldeão semi-proletário no geral (ou seja, os representantes dos oprimidos, da maioria esmagadora da população), aproveitem qualquer coisa próxima da liberdade de realizar reuniões nos melhores edifícios, da liberdade de utilizar as maiores gráficas e os maiores estoques de papéis para expressar suas ideias e para defender seus interesses, da liberdade de promover homens e mulheres de sua própria classe para administrar e para colocar o Estado ‘nos trilhos novamente’, como na Rússia soviética?

Na Rússia, entretanto, a máquina burocrática foi completamente esmagada e arrasada; os antigos juízes foram todos empacotados e mandados para longe, o parlamento burguês foi dispersado – e uma representação muito mais acessível foi dada aos trabalhadores e camponeses; seus Sovietes substituíram os burocratas, ou seus Sovietes colocaram os burocratas sob seu controle, e seus Sovietes foram autorizados a eleger os juízes.”

A Assembleia Constituinte

Em 1917, o primeiro governo operário gerado por esse processo foi na verdade uma coalizão entre os bolcheviques e a Esquerda Socialista Revolucionária (SRs). Nesse período, todos esses partidos – a Esquerda e a Direita SR, todos os mencheviques etc. – estavam participando nas eleições soviéticas, sendo eleitos ao Congresso dos Sovietes, e publicando seus jornais livremente.

Contudo, no curso da luta na Guerra Civil, que iniciou em meados de 1918, é verdade que muitas destas liberdades foram restringidas. O fato de que isso foi necessário é uma evidência de que não pode existir nenhuma verdadeira democracia classista “acima de tudo”. Esses outros partidos pegaram em armas contra o regime, eles conspiraram com os governos imperialistas na Guerra Civil que iria levar a muitas mortes e muitas dificuldades. Tratá-los como cavalheiros em uma roda de conversa seria impossível.

Após terem rejeitado na sua primeira sessão em 18 de janeiro de 1918 a resolução do bolchevique Chernov de que a Assembleia Constituinte aceitaria o poder dos Sovietes como soberano, a Assembleia, essencialmente um parlamento burguês, simplesmente cessou de existir quando os guardas declararam que estavam muito cansados para mantê-la aberta. Em outras palavras, o poder material real estava nos Sovietes. Eles comandaram os “corpos de homens armados”, não por meio de ordens compulsórias, mas de lealdade de classe, pois esses corpos armados de homens eram Guardas Vermelhos da classe trabalhadora. Qualquer pretenso Estado que sequer consegue encontrar alguém para defendê-lo está condenado desde o início.

No dia seguinte um decreto dissolvendo a Assembleia sucintamente explicou que “as massas operárias se convenceram a partir de sua própria experiência de que o parlamentarismo burguês está ultrapassado; que ele é completamente incompatível com a construção do socialismo; que apenas instituições de classe, e não instituições nacionais, podem quebrar a resistência das classes proprietárias e pavimentar o caminho para a sociedade socialista” (Citado por Serge, op cit, p. 135).

CONCLUI NA PARTE 2

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